Por que a concentração monopólica da mídia é a negação do pluralismo
Nos
últimos meses, vem crescendo a mobilização de dezenas de entidades da
sociedade civil em torno de duas iniciativas convergentes na luta pela
democratização da comunicação no Brasil: a campanha “Para expressar a
liberdade”[1], que defende uma nova e abrangente lei geral de comunicações; e o Projeto de Lei de Iniciativa Popular das Comunicações[2], cuja finalidade é regulamentar os artigos da Constituição de 1988 que impedem monopólio
ou oligopólio dos meios de comunicação de massa e estabelecem
princípios para a radiodifusão sob concessão pública (rádio e
televisão).
Por Dênis de Moraes, para o Blog da Boitempo
São
propostas fundamentais que têm como pressuposto a necessidade de se pôr
fim à concentração monopólica da mídia. Por que a concentração favorece
as ambições mercantis de grupos midiáticos, afeta a diversidade
informativa e cultural e representa a negação do pluralismo? Este artigo
propõe-se a lançar luzes sobre a questão, que tem a ver com a garantia
constitucional da liberdade de expressão e com o aprofundamento dos
direitos democráticos no país.
As
últimas décadas acentuaram, no Brasil e na América Latina, o traço
histórico de concentração de expressiva parcela dos meios de comunicação
nas mãos de um reduzido número de megagrupos. A moldura de concentração
prospera em meio à digitalização de sistemas, redes e plataformas de
produção, transmissão e recepção de dados, imagens e sons. As
infotelecomunicações (palavra que utilizo para designar a convergência
tecnológica entre os setores de informática, telecomunicações e mídia)
asseguram as condições objetivas para o crescimento exponencial da
oferta de canais, produtos, serviços e conteúdos. Só que essa vocação
expansiva se consolida sob controle, influência e lucratividade de
poucas corporações, via de regra globais, ou nacionais e regionais em
alianças estratégicas ou parcerias com gigantes transnacionais.
O
ciclo de concentração monopólica está intimamente associado à
diversificação produtiva apoiada em tecnologias de ponta e na capacidade
de inovar em prazos curtíssimos e a custos reduzidos. Os focos das
políticas de comercialização são a diminuição de custos industriais e
enormes ganhos de produtividade com a economia de escala. Para preservar
poderes monopólicos, as corporações recorrem a duas manobras
principais, segundo David Harvey: uma ampla centralização do capital em
megaempresas, que busca avidamente o domínio por meio do poder
financeiro, economias de escala e posição de mercado, e dos direitos
monopólicos da propriedade privadas por meio de direitos de patente,
leis de licenciamento e direitos de propriedade intelectual”[3].
Significa
concentrar nas mesmas mãos todas as etapas dos processos
tecnoprodutivos, com vistas a garantir liderança na cadeia de
fabricação, processamento, comercialização e distribuição dos produtos. O
lastro financeiro, a capacidade logística, a infraestrutura tecnológica
e o controle de inovações e patentes conferem aos conglomerados
multimídias vantagens competitivas incomparáveis, já que empresas
nacionais de menor porte não têm recursos nem suportes para gerir
investimentos de vulto[4].
Às pequenas e médias firmas restam nichos de mercado ou o fornecimento
de insumos e serviços especializados, sempre que é mais vantajoso para
as grandes companhias terceirizar a produção ou adquirir itens cuja
fabricação seria dispendiosa.
Os
monopólios midiáticos são determinantes porque interferem na
conformação do imaginário coletivo e em valores consensualmente aceitos e
assimilados. No Brasil e na América Latina, tanto no âmbito público
quanto na esfera privada, há fatores que contribuem, em graus variados
mas não menos substanciais, para agravar a concentração. O déficit de
investimentos setoriais, as políticas públicas inconsistentes e a
inércia regulatória afastaram o Estado, nos últimos decênios, do
protagonismo nas áreas de informação, entretenimento e telecomunicações.
Em contrapartida, grupos transnacionais ocuparam vorazmente os vácuos
abertos, favorecidas por legislações frágeis, anacrônicas e permissivas,
que lhes permitem acumular licenças de rádio e televisão – as joias da
coroa em termos de faturamento e projeção política, ideológica e
cultural.
Esse
quadro nos leva a convergir com Néstor García Canclini quando avalia
que a desigualdade na produção, na distribuição e no acesso aos bens
culturais “não se explica como simples imperialismo ou colonialismo
cultural (ainda que subsistam esses comportamentos), e sim pela
combinação de processos expansivos, exercícios de dominação e
discriminação, inércias nacionalistas e políticas culturais incapazes de
atuar na nova lógica dos intercâmbios”.[5]
Com
as desregulamentações e privatizações durante os anos 1980 e 1990, os
megagrupos alastraram-se sem maiores restrições legais na América
Latina. Eles adotam uma estratégia centrada em mercados mais seguros e
rentáveis, estabelecendo parâmetros de produção, distribuição, difusão e
circulação de conteúdos que lhes proporcionem crescente rentabilidade.
A estratégia é oportunista porque, constantemente, as majors abandonam
segmentos arriscados em termos de investimentos (cinema e música) para
operar prioritariamente em áreas com retornos mais imediatos
(telenovelas, seriados, jogos eletrônicos) e nos meios de massa que
atraem publicidade e patrocínios (imprensa, rádio, televisão). Aliam-se
ainda a sócios ou parceiros globais e regionais que lhes ofereçam
logísticas sólidas, financiamentos assegurados e inserção mercadológica.[6]
Em
função da recessão econômica pós-2008 na Europa e nos Estados Unidos,
as corporações transnacionais incrementaram a corrida por lucros
compensatórios na América Latina. A região converteu-se em um dos
mercados mais cobiçados para o escoamento de produtos e serviços. O
vasto potencial de consumo, o espanhol como segundo idioma da
globalização, a carência por tecnologias avançadas e a ausência de
legislações antimonopólio motivaram corporações, sobretudo
norte-americanas, a incrementar os negócios, expandindo marcas, patentes
e conteúdos no maior número possível de praças. News Corporation,
Viacom, Time Warner, Disney, Bertelsmann, Sony e Prisa adquiriram ativos
de mídia e/ou sedimentaram acordos com grupos regionais. Com isso,
ampliaram exponencialmente suas atuações multissetoriais e os mercados,
com as vantagens adicionais de reduzir e repartir custos e contornar
fatores de risco – em especial os decorrentes da instabilidade econômica
e do encolhimento da vida útil das mercadorias. Para os grupos
regionais, tais associações representam a possibilidade de entrecruzar
negócios e estabelecer alianças com atores de maior peso no cenário
internacional.
Os
quatro maiores conglomerados de mídia latino-americanos – Globo do
Brasil; Televisa do México; Cisneros da Venezuela; e Clarín da Argentina
–, juntos, retêm 60% do faturamento total dos mercados
latino-americanos. Para se ter uma ideia dos níveis recordes de
concentração, basta saber que Clarín controla 31% da circulação dos
jornais, 40,5% da receita da TV aberta e 23,2% da TV paga; Globo
responde por 16,2% da mídia impressa, 54% da TV aberta e 44% da TV paga;
Televisa e TV Azteca formam um duopólio, acumulando 69% e 31,37% da TV
aberta, respectivamente.[7]
No Brasil, é aguda a concentração na televisão aberta. De acordo com levantamento do projeto Os Donos da Mídia,
seis redes privadas (Globo, SBT, Record, Band, Rede TV e CNT) dominam o
mercado de televisão no Brasil. Essas redes privadas controlam, em
conjunto, 138 dos 668 veículos existentes (TVs, rádios e jornais) e 92%
da audiência televisiva. A Globo, além de metade da audiência, segue com
ampla supremacia na captação de verbas publicitárias e patrocínios.[8]
Cabe
salientar ainda que, no Brasil e na América Latina, a concentração
monopólica se estabelece, há décadas, sob a égide de dinastias
familiares proprietárias dos principais grupos midiáticos. Entre tais
famílias estão Marinho, Civita, Frias, Mesquita, Sirotsky, Saad,
Abravanel, Sarney, Magalhães e Collor (Brasil), Cisneros e Zuloaga
(Venezuela), Noble, Saguier, Mitre, Fontevecchia e Vigil (Argentina),
Slim e Azcárraga (México), Edwards, Claro e Mosciatti (Chile), Rivero,
Monastérios, Daher, Carrasco, Dueri e Tapia (Bolívia), Ardila Lulle,
Santo Domingo e Santos (Colômbia), Verci e Zuccolillo (Paraguai),
Chamorro e Sacasa (Nicarágua), Arias e González Revilla (Panamá), Picado
Cozza (Costa Rica), Ezerski, Dutriz e Altamirano (El Salvador),
Marroquín (Guatemala) e Canahuati, Roshental, Sikaffy, Willeda Toledo e
Ferrari (Honduras).[9]
Entre
os impactos mais graves da concentração, podemos apontar: as políticas
de preços predatórias destinadas a eliminar ou a restringir severamente a
concorrência; os controles oligopólicos sobre produção, distribuição e
difusão dos conteúdos; e a acumulação de parentes e direitos de
propriedade intelectual por cartéis empresariais. Martín Becerra chama a
atenção ainda para o alto risco de unificação das linhas editoriais e a
prevalência das ambições empresariais sobre os interesses do conjunto
da sociedade. E acrescenta:
“A
concentração vincula os negócios do espetáculo (estrelas exclusivas),
dos esportes (aquisição de direitos de transmissão), da economia em
geral (inclusão de entidades financeiras e bancárias) e da política
(políticos transformados em magnatas da mídia ou em sócios de grupos
midiáticos) com áreas informativas, o que gera repercussões que alteram a
pretensa ‘autonomia’ dos meios de comunicação.”[10]
Os
impactos negativos da transnacionalização cultural se refletem na
ocupação oligopolizada e na desnacionalização das indústrias de
entretenimento. Os dois principais mercados editoriais, Brasil e
Argentina, estão majoritariamente nas mãos de grupos estrangeiros. As majors dominam
as cadeias de distribuição e exibição cinematográficas, com supremacia
de lançamentos de filmes estrangeiros. O mercado fonográfico apresenta
desequilíbrios semelhantes. No Brasil as gravadoras independentes
produzem 70% da música nacional, mas só conseguem 8% de espaço de
difusão nas emissoras de rádio e televisão. Ao mesmo tempo, as majors gravam apenas 9% com repertório nacional e, no entanto, ficam com 90% dos espaços de divulgação.[11]
Sem
contar que, no âmbito da Organização Mundial do Comércio, os Estados
Unidos tentam sempre impedir protecionismos nas indústrias audiovisuais
(na forma de subsídios e fomentos), para favorecer os negócios de suas
corporações. Os recursos de distribuição e exibição audiovisuais estão
subordinados às estratégias traçadas pelas majors norte-americanas.
“Conseguem isso com o apoio de políticas protecionistas e os
privilégios impositivos que o governo norte-americano reserva à sua
indústria cinematográfica, bem como através da pressão internacional
sobre as demais nações para que favoreçam a expansão de seu cinema”.[12] O
resultado é que 85,5% das importações audiovisuais da América Latina
provêm dos Estados Unidos. Mensalmente, 150 mil horas de filmes,
seriados e eventos esportivos norte-americanos são apresentadas nas
emissoras de TV latino-americanas.[13]
A
concentração monopólica da produção simbólica guarda estreita
proximidade com a comercialização em grandes quantidades lucrativas. As
conveniências corporativas se fixam em estratégias de maximização de
lucros e de manutenção da hegemonia mercadológica, sem demonstrar maior
interesse com a formação educacional e cultural das platéias, muito
menos com sentimentos de pertencimento e valores que configuram
identidades nacionais, regionais e locais. A prevalência das lógicas
comerciais manifesta-se no reduzido mosaico interpretativo dos fatos
sociais; na escassa variedade argumentativa, em razão de enfoques
ajustados a diretivas ideológicas das empresas; na supremacia de gêneros
sustentados por altos índices de audiência e patrocínios (telenovelas, reality shows,
esportes); nas baixas influências do público nas linhas de programação;
no desapreço pelos movimentos sociais e comunitários nas pautas
jornalísticas; na incontornável disparidade entre o volume de enlatados
adquiridos nos Estados Unidos e a produção audiovisual nacional. Em face
da concentração monopólica, a possibilidade de interferência do público
(ou de frações dele) nas programações depende não somente da capacidade
reativa dos indivíduos, como também, e sobretudo, de se garantirem
direitos coletivos e controles sociais democráticos sobre a produção e a
circulação de dados, sons e imagens.
À
luz do exposto, podemos concluir que se torna insuperável a exigência
de legislações antimonopólicas de comunicação, sobretudo na radiodifusão
sob concessão pública, em função da penetração social e dos requisitos
de interesse coletivo que as empresas concessionárias de canais de rádio
e televisão devem cumprir para desempenhar suas funções de informar,
esclarecer e entreter. Impossível imaginar uma democratização efetiva da
vida social, com livre circulação de informações e pluralismo, diante
do desmedido poder dos impérios midiáticos. São urgentes mecanismos
legais para coibir a concentração e a oligopolização, além de permitir
lisura e transparência aos mecanismos de concessão, regulação e
fiscalização das licenças de rádio e televisão. Há exemplos inspiradores
na América Latina: as novas leis de comunicação da Argentina[14] e do Equador[15],
que resultaram de processos participativos de discussão e elaboração e
são reconhecidas por organismos internacionais como marcos regulatórios
avançados.
São
essenciais, também, políticas públicas que reorientem fomentos,
financiamentos e patrocínios, de modo a valorizar meios alternativas de
comunicação (como rádios e televisões comunitárias, agências de notícias
independentes, mídias digitais), bem como apoiar a produção audiovisual
nacional e preservar o patrimônio e as tradições culturais. Políticas
debatidas entre segmentos representativos da sociedade e o poder
público, e formuladas com realismo, considerando as mutações da era
digital e seus efeitos nas atividades comunicacionais. Políticas que
protejam a diversidade frente à transnacionalização simbólica e
favoreçam a manifestação de vozes ignoradas ou excluídas dos canais
midiáticos. Que estimulem a compreensão e a interpretação dos fatos de
maneira plural, avaliando os múltiplos aspectos sociais, econômicos,
culturais e políticos envolvidos. Iniciativas, enfim, que possam
intensificar a diversidade cultural e fazer prevalecer o direito humano à
comunicação como bem comum dos povos.
* Desenvolvo questões abordadas neste artigo nos meus livros Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação, em parceria com Ignacio Ramonet e Pascual Serrano(São Paulo, Boitempo/Faperj, 2013), e Vozes abertas da América Latina: Estado, políticas públicas e democratização da comunicação(Rio de Janeiro, Mauad/Faperj, 2011).
Notas
[1] Mais detalhes sobre a campanha “para expressar a liberdade” aqui.
[2]Sobre o Projeto de Lei de Iniciativa Popular das Comunicações, aqui.
[3] David Harvey. “A arte de lucrar: globalização, monopólio e exploração da cultura”, em Dênis de Moraes (org.), Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder, Rio de Janeiro: Record, 2003 (6a. ed., 2013), p. 148.
[4] Omar López e Sylvia Amaya. Panorama de las industrias culturales en Latinoamérica. Dimensiones económicas y sociales de las industrias culturales. Texto apresentado no II Seminario de Economía y Cultura, Montevidéu, 2004.
[5] Néstor García Canclini, La sociedad sin relato: antropología y estética de la inmanencia, Buenos Aires: Katz, 2010, p. 95.
[6] Enríque Bustamante, “Industrias culturales y cooperación iberoamericana en la era digital”, Pensamiento Iberoamericano, Madri, n. 4, junho de 2009, p. 79-80.
[7]Martín Becerra e Guillermo Mastrini, Los dueños de la palabra: acceso, estructura y concentración de los medios en la América Latina del siglo XXI. Buenos Aires: Prometeo, 2009.
[9] Dênis de Moraes, Vozes abertas da América Latina: Estado, políticas públicas e democratização da comunicação, Rio de Janeiro, Mauad/Faperj, 2011, p. 40.
[10]Martín
Becerra, “Mutaciones en la superficie y cambios estructurales. América
Latina en el Parnaso informacional”, em Dênis de Moraes (org.),Mutaciones de lo visible: comunicación y procesos culturales en la era digital. Buenos Aires: Paidós, 2010, p. 104.
[11] Beto Almeida. “Por telefone, perigosa desnacionalização da televisão ameaça soberania brasileira”, Brasil de Fato, São Paulo, n. 274, 29 de maio-4 de junho de 2008.
[12] Néstor García Canclini, La sociedad sin relato: antropología y estética de la inmanencia, Buenos Aires: Katz, 2010, p. 87.
[13]Dênis de Moraes, Cultura mediática y poder mundial. Buenos Aires: Norma, 2006, p. 46.
[14] A íntegra da Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual da Argentina está disponível aqui.
[15] A Ley Orgánica de Comunicación do Equador pode ser consultada aqui.
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Depois da leitura deste artigo, recomendamos o livro Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação, de Dênis de Moraes (org.), Ignacio Ramonet e Pascual Serrano. Disponível em ebook na Amazon, Google Play, Saraiva e Livraria da Travessa, dentre outros.
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Confira prévia clicando na capa do livro:
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Dênis de Moraes é
doutor em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (1993) e pós-doutor pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales (CLACSO, Argentina, 2005). Atualmente, é professor associado do
Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal
Fluminense e pesquisador do CNPq e Cientista do Nosso Estado da FAPERJ.
Foi contemplado em 2010 com o Premio Internacional de Ensayo Pensar a
Contracorriente, concedido pelo Ministerio de Cultura de Cuba e pelo
Instituto Cubano del Libro. Autor de mais de 25 livros publicados no
Brasil, na Espanha, na Argentina e em Cuba. Pela Boitempo, publicou Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica à democratização da informação (2013) e O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos (2012). Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.